quarta-feira, 18 de julho de 2012

"Tudo no mundo é secreto" / Plano sequência



"No final do ano passado, depois que alguns jornais noticiaram que a editora responsável por esta publicação me havia encomendado um texto sobre o pecado da luxúria, os originais deste livro e o recorte da nota de um dos jornais em questão foram entregues por um desconhecido ao porteiro do edifício onde trabalho, acompanhados de uma bilhete assinado pelas iniciais CLB. Informava que se trata de um relato verídico, no qual apenas a maior parte dos nomes das pessoas citadas foi mudada, e que sua autora é uma mulher de 68 anos, nascida na Bahia e residente no Rio de Janeiro. Autorizava que os publicasse como obra minha, embora preferisse que eu lhes revelasse a verdadeira origem.. 'Não por vaidade', escreveu ela, 'pois até as iniciais abaixo podem ser falsas. Mas porque é irresistível deixar as pessoas sem saber no que acreditar'(...)" (João Ubaldo Ribeiro, 1998, prólogo de "A casa dos Budas Ditosos").

Cito este prólogo porque ele antecipa o que também aconteceu comigo, ao receber um texto assinado por Drosófila Melanogaster, "assim, abrasileirado com o 's' e o acento". Mulher, 38 anos, residente em São Paulo, natural de Recife, eis abaixo o seu texto, que, tal como João Ubaldo fez, eu dedico às mulheres!


Plano-sequência

“Ele parece gay e ela é linda. Quem não conhece um casal assim? Risos.”

Foi ironizando mentalmente as “interações sociais” do Facebook que me dei conta que gostaria de ter uma amiga ao meu lado para poder comentar a última foto publicada daquela pessoa cujo telefone eu não tenho gravado no meu celular (mas que está ali na minha timeline, somehow).

Não tendo, mandei pra uma amiga em forma de arroba um tweet (provavelmente a mais solitária das interações da web).

Talvez tenha me lembrado dessa amiga porque ela é dessas com quem as conversas são sempre tão boas a ponto de fazerem os pensamentos acelerarem de forma criativa e em ritmo suficientemente confortável para serem brindados com várias cervejas geladas a curtos intervalos de tempo. E, por isso, devo a ela um daqueles episódios da vida real que, quando acabam, te deixam com a sensação de que virariam uma boa história. Interessante, ao menos. Neste caso, virou texto. Um texto que talvez eu passasse para ela publicar.

Com a expectativa de um “talvez-dê-certo”, elas foram se encontrar. Ambas disputaram aquele espaço nas agendas como quem exige um direito adquirido. Elas se conheciam há quase uma década, mas se encontraram pessoalmente uma só vez; as interações se limitavam à coincidências virtuais e as fotos 3x4 dos perfis atualizavam as memórias.

Mas, incrivelmente, a relação ali era intensa, curiosa, coesa. Elas tinham tanto a ver uma com a outra e, de um jeito único e peculiar, se amavam. Era gostoso dividir aquele pedacinho afetivo com alguém que já encheu tantas linhas nos tempos em que se escreviam cartas.

Pensando agora, estar associada ao sentimento quase indescritível de receber uma carta é (t)denso. Quase uma covardia com as futuras namoradas, que começam em ilusória desvantagem no amor.

Então veio o segundo encontro e as duas, por alguns segundos, foram adolescentes de novo. A ansiedade tomou conta e todo o conjunto de mão-suando/frio-na-barriga apareceu. O beijo, o sexo, os sorrisos, tudo devidamente visto e revisto, tal como um encontro após anos exige.

Cansadas com o intenso e delicioso protocolo, resolveram se dar alguns minutos de privacidade para o banho. Ela, aproveitando a solidão que àquela hora lhe era muito bem vinda, se deixou observar a casa da outra, com a mesma curiosidade de quem vasculha o álbum de fotos daquele nosso amigo do primeiro parágrafo.

Ela notava cada detalhe e, fazendo jus à criticidade feminina e ao irresistível impulso humano da interpretação, criava hábitos e definia estilos para a outra a partir do que então considerava fragmentos de personalidade espalhados pela pia, pelo box, refletidos nas cores e formatos dos tapetes.

Convicta, formava opiniões sobre a outra. Deu-se conta de como comparava a sua vida com aquela que estaticamente lhe mirava ao notar a embalagem do shampoo disposto na prateleira. “Blast”.

“Shampoo Blast”, a formadora de opiniões repetiu pra si em voz alta, com certo ar de desdém, talvez porque soubesse que aquele jamais teria sido a sua escolha de compra no supermercado.

Neste momento a imaginação ficou offline e a triste constatação de que aquele vidro de shampoo era muito mais do que simplesmente “desconhecido” ou “meio chinfrim” tomou conta dos pensamentos e do banheiro. Diferentemente do vapor da água quente, ela não esvaía pelos vãos da janela.

Aquele shampoo se tornou a prova incontestável de que aquele encontro obedeceria à lógica do início-meio-e-fim, sem qualquer pretensão romântica, sem clima “meant to be” que ambas acumularam naqueles anos todos de conhecimento mútuo.

Ela, a observadora, queria alguém que fizesse melhores escolhas (em tudo e sobre tudo), que se amasse explicitamente, que tivesse orgulho da sua própria feminilidade e que não subjulgasse o conceito de autoestima. E, por um infortúnio do destino, aquele shampoo parecia não dizer isso sobre a outra. “Eduardo e Mônica”, pensava ela, “só que sem o final feliz”.

Sem se importar com a possível crueldade implícita naquele pensamento, ela só pensou em sair do banho o mais rapidamente possível. E respirou aliviada ao pensar que o seu voo partiria cedíssimo no dia seguinte, deixando-as com pouco mais de uma noite juntas.

Com os cintos de segurança já afivelados para a decolagem, o fim de semana lhe veio em uma sequência de fotografias à mente. Como que as guardando em um arquivo mental, ela concluía em silêncio que, definitivamente, era mais seguro interpretar o álbum de fotos alheio.


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