sábado, 9 de abril de 2011

Salomé

Não, eu não nasci assim. Assim eu fui me tornando no botar dos ovos.

É impressionante o poder da vida de nos transformar em algos que nem imaginamos... Nos relacionando com as pessoas ganhamos nomes, características e personalidades que nunca pensamos em ser.

O fato é que de repente pra mim não havia mais cuidado, não havia respeito, como algo temido e odiado, eu não mais me sentia uma pessoa. Como se minha existência agredisse as pessoas, sem perceber como e porque, eu fui sendo colocada num lugar estranho e solitário, onde eu pagava por erros que eu nunca soube quais eram.

Mas eu não me conformei com o desdém assim fácil. Eu insisti em pelo menos entender, se não o porquê, mas o quê eu era para as pessoas. E assim fiz uma promessa de que a cada xingamento, julgamento, fofoca, desrespeito e mal trato, eu me transformaria fisicamente, materializando as características implícitas nas falas das pessoas. Seria a materialização de uma ordem social. O nascimento de algo bizarro, que mostrasse pra todo mundo o poder de suas falas e julgamentos.

Foi assim que, paulatinamente, foram nascendo em mim penugens, depois penas. A pele dos meus pés foi se modificando, se tornando áspera e amarelada. Meu cabelo foi caindo, cedendo lugar para uma pequena crista vermelha, que foi crescendo e se avolumando. E minha boca foi, aos poucos, se transformando em um bico pontudo e duro.

Hoje sou uma galinha. Uma galinha digna e feliz. Com algumas dificuldades para me expressar, pois não é muito fácil escrever com as asas. Mas digna e feliz porque não aceitei ser transformada em algo de maneira silenciada. Se o efeito do social sobre nós é inevitável, o silêncio é opcional.

E foi assim que as pessoas passaram a conviver com titicas, cacarejos, ovos e bicadas, arcando com as conseqüências daquilo que produziram.

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